a Nova Perspectiva sobre Paulo.(LIVRO DE GÁLATAS)

28/05/2011 21:54

 

A recepção de Gálatas e a nova perspectiva

 
O post do Júlio(MEU IRMÃO EM CRISTO) apresentou uma questão que tem sido foco de muitas disputas nos EUA e Europa e que no Brasil tem sido introduzida de forma ainda tímida.

Não pretendo nesta mensagem entrar na discussão, mas salientar um aspecto que pode ilustrar o que ocorre com a Nova Perspectiva sobre Paulo.

Falo da recepção de textos literários, sejam eles bíblicos ou não. Dentro de um quadro composto por autor - obra - leitores há uma dinâmica histórica que não se interrompe e que é cercada por forças nem sempre claras.

Autores escrevem textos e editores editoram livros visando divulgá-los e vendê-los o mais que possível. Do outro lado, leitores sentem-se atraídos por obras, que, ao lerem, atribuem sentido a partir de suas vivências de mundo.

A questão é que nem sempre as ênfases dos autores são mantidas por editores, que podem, mediante ações editoriais externas como prefácios, orelhas, apresentações etc, deslocar sentidos originais com o objetivo, segundo eles, de maior vendagem. Do mesmo modo, o leitor nem sempre aceita ser guiado por direções impostas pelos autores e editores, chegando a compreensões e sentidos estranhos aos dois primeiros.

Essas relações são trabalhadas principalmente por historiadores da cultura que desenvolvem pesquisas ligadas à história da leitura e da recepção de livros.

Tais questões são relevantes para pensarmos a nova intepretação a respeito das posições paulinas, e de Gálatas especificamente. Mas, é bom dizer, o aspecto "novo" de tal leitura não deve gerar estranhamento nem susto. Afinal, todo ato de leitura é, de uma forma ou de outra, uma produção de sentido, novo, a partir de novos leitores em outros tempos que não aqueles da produção da obra.

Isso significa que a Nova Perspectiva sobre Paulo é tão nova quanto foi a leitura de Paulo, via justificação pela fé, feita por Lutero e por outros reformadores. A questão é que esta última interpretação, por distanciamento histórico e por motivos ideológicos/teológicos, é assumida como "a leitura" correta.

Como conclusão do que disse acima, toda leitura traz uma nova abordagem a partir dos vários elementos que a envolvem, a grande maioria deles ligados às vivências dos leitores. Isso não significa que não se possa discutir se uma leitura está correta ou equivocada. Mas deve-se agregar à discussão os aspectos citados acima.

Esse não é exatamente o aspecto dinâmico das leituras feitas no protestantismo multiforme brasileiro?
 
 

terça-feira, 24 de maio de 2011

A “nova” perspectiva sobre Paulo

 
Ao mesmo tempo em que o Leonel nos ajuda com os dados “introdutórios” da carta aos Gálatas, deixem-me começar a apresentar o que se costuma chamar de a “nova perspectiva” sobre Paulo.

Para entender a “nova” precisamos, primeiro, saber qual é a “velha” perspectiva. Basicamente a “velha” perspectiva tem três características: (1) os textos de Paulo são lidos a partir da compreensão luterana da “justificação pela fé” como o contrário da justificação pelas obras. Ou seja, nós lemos as cartas de Paulo como se elas fossem cartas de teologia protestante – a justificação pela fé é a “conversão” a Jesus Cristo em resposta à pregação do Evangelho; (2) as “obras da lei” em Paulo são entendidas como sinônimo de “obras”, ou seja, atos morais que realizamos e que nos garantem algum mérito; e (3) a “Lei” é separada das “obras” e é entendida como o contrário da “graça” – a polêmica de Paulo era contra O (com letra maiúscula mesmo) Judaísmo – ou seja, a religião “legalista”.

Então quais são as características da “nova” perspectiva? Respondo fazendo um quiasmo em relação ao parágrafo anterior: (1) o Judaísmo não é mais entendido como “legalista”, no sentido de que a Lei é contrária à graça. O Judaísmo é entendido como “nomismo da aliança”, ou seja, a Lei depende da graça, vem depois da graça e é a resposta do povo de Israel à graça libertadora de Deus. O legalismo é uma distorção do Judaísmo e não o próprio Judaísmo; (2) as “obras da lei” são o cumprimento das “doutrinas” dos grandes ”partidos” religiosos judaicos (fariseus, saduceus, essênios). São a marca principal da identidade do Judaísmo de acordo com esses “partidos”. O que faz um judeu “judeu” é que ele pratica algumas ações que o distinguem dos gentios – ações tais como: circuncisão, guarda do sábado, alimentação pura...; e (3) a justificação pela fé não é o contrário da justificação pelas “obras”; a justificação pela fé é a marca da identidade dos cristãos em contraste com os judeus e com os gentios. É marca de identidade dos primeiros cristãos, não dos “protestantes”. E é exatamente a “justificação pela fé” que se torna o conceito mais em questão na nova perspectiva sobre Paulo – pois não podemos mais identificar justificação pela fé com a identidade protestante ou evangélica.

Tudo isso que escrevi acima você pode encontrar bem explicado e detalhado no livro de James Dunn, publicado pela Academia Cristã: A Nova Perspectiva sobre Paulo.

Há, porém, algo mais a acrescentar que não está no livro de Dunn. Na América Latina a “nova” perspectiva sobre Paulo é, basicamente, política. Veja, por exemplo, a tese de Elsa Tamez: Contra toda condenação; ou o livreto de Gorgulho e Ana Flora Paulo: o Evangelho da Liberdade; ou um artigo que escrevi para a Estudos Bíblicos: “Reescrever a espiritualidade na vida - Uma proposta para a leitura de Romanos 5-8”. Estudos Bíblicos, v.30, p.67-73, 1991. Perspectiva que, no primeiro mundo, é adotada por autores como Neil Elliot: Libertando Paulo; ou Richard Horsley, etc. Na nova perspectiva política, a justificação é a justiça libertadora de Deus, não só para o indivíduo, mas para toda a criação!

Assim, o que nós três desejamos fazer é ler trechos de Gálatas à luz dessa “nova perspectiva”, mas mantendo o projeto do blog: três olhares distintos e complementares: o literário, o semiótico e o da recepção. O resultado, porém, está em aberto ...
 
 

Gálatas – Introdução 2

 
Continuo o post anterior com trechos extraídos do verbete “Galatians, Epistle to the”, do Anchor Bible Dictionary (v. 2, p. 872-875). Reafirmo o que disse, que tais informações devem ser recebidas como um pontapé inicial para as discussões, e não como fatos inquestionáveis.

A oposição anti-paulina

De grande importância é o que o apóstolo diz a respeito de seus oponentes, cuja agitação ele remonta à Conferência de Jerusalém (2.4). Segundo o apóstolo, a crise no presente é causada por intrusos que quase conseguiram persuadir os os gálatas de que sua salvação dependia da aceitação da Torá e da circuncisão (1.6-7; 5.1-12; 6.12-13).

A questão a respeito de quem eram tais pessoas é ainda uma matéria controvertida. A visão tradicional é apresentada no Prólogo Marcionita, que identifica os oponentes como “falsos apóstolos” que tinham voltado à Torá e à circuncisão (Harnack, 1924: 127-128; 37-38). Chamados Judaítas ou Judaizantes (Gl 2.14; Inácio Mag. 10.3), eles eram vistos como cristãos judeus que erroneamente prescreviam a Torá e a circuncisão para todos os cristãos. A redescoberta e reconstrução do cristianismo judaico por historiadores dos séculos XIX e XX, contudo, trouxe à luz um quadro mais complexo (cf. Lüdemann 1983b para a história da pesquisa e bibliografia). O quadro é consequência de uma série de hipóteses. Lütgert (1919) afirma que Paulo lutou em dois fronts, contra judaítas observantes da lei e contra entusiastas libertinos (“pneumáticos”); a evidência para o segundo grupo, contudo, vem principalmente de 1 Coríntios. Schmithals (para bibliografia, cf. Betz Galatians Hermeneia 7, n. 46; Schmithals 1983a: 27-58; 1983b: 111-113) identifica os oponentes como cristãos judeus gnósticos que por razões mágicas estavam interessados em rituais judaicos mas não na Torá como um todo. Outros pesquisadores optam por outras combinações sincréticas entre elementos cristãos, judaicos, gentílicos e gnósticos. Gálatas, entretanto, não apresenta evidências de gnosticismo, e não devemos pressupô-los a partir de outras cartas paulinas ou de fontes posteriores.

No presente, há um consenso crescente de que os oponentes de Paulo eram missionários cristãos judeus que se opunham à missão paulina. Para eles, a Igreja Cristã era uma extensão da religião judaica, de modo que a união à Igreja demandava a consequente conversão ao judaísmo, a observância da Torá e a submissão à circuncisão. Jewett (1970-71: 198-212) apontou a conexão desse grupo com o Judaísmo Palestiniense, tanto cristão como não-cristão. Um questão posterior é se Tiago (2.12) estava, de fato, por trás dos agitadores (cf. Lüdemann 1983a: 64-66). Betz (Galatians Hermeneia, 5-9) os vê em conexão com o início da história das igrejas da Galácia: após uma fase inicial de entusiasmo espiritual, os gálatas enfrentaram problemas crescentes com “a carne”, até o momento em que os anti-paulinistas os impressionaram com a segurança cúltica e moral proveniente da Torá.
 
 

domingo, 22 de maio de 2011

Gálatas – Introdução

 
Como falamos, passamos a estudar a carta de Paulo aos Gálatas.

Neste post e no próximo colocarei alguns trechos extraídos do verbete “Galatians, Epistle to the”, do Anchor Bible Dictionary (v. 2, p. 872-875), um dos melhores e mais atualizados dicionários bíblicos. Com o complemento de que o autor do verbete, Hans Dieter Betz, é um especialista na carta paulina. O objetivo é dar um pontapé inicial para nossas discussões, lembrando que as citações abaixo não implicam em total concordância com seus conteúdos.

Embora não estejam entre aspas, os parágrafos abaixo são tradução do referido dicionário.

Destinatários

A carta é endereçada às “igrejas da Galácia” (1.2; cf. 3.1). A localização da região denominada Galácia tem sido extensivamente discutida, mas sem resultados definitivos. A localização mais provável é a Anatólia Central, onde tribos de celtas nômades se assentaram após 278/277 a.C. (a “Galácia do Norte” ou “hipótese territorial”). Menos provável é a “Galácia do Sul” ou “hipótese da província”, que supõe que Paulo está se referindo à Província Gálata, estabelecida por Roma em 25 a.C. Tal província incluiria a Galácia bem como algumas áreas ao sul (Pisídia, Licaônia e Panfília) que podem ser conectadas à primeira viagem missionária de Paulo, segundo Atos 13-14. Mesmo assim, as informações apresentadas por Gálatas e Atos não podem ser harmonizadas. At 13-14 não menciona a Galácia. Em 16.6 e 18.23 a “província da Galácia” é mencionada, mas nenhuma missão é descrita. Do mesmo modo, os habitantes da Pisídia e Licaônia não eram chamados de gálatas. Se os itinerários descritos em Atos são historicamente confiáveis, relatando de modo detalhado todas as viagens de Paulo, isso é um problema sem solução. Embora nenhum traço arqueológico tenha sido deixado, a Anatólia Central é a localização mais provável para as igrejas da Galácia (cf. Betz, Galatians, Hermeneia 1-5).

Data e lugar de origem

A carta aos Gálatas pode ser datada apenas aproximadamente, uma vez que não existem evidências concretas. Os pesquisadores argumentam tanto em favor de uma data mais remota quanto de uma mais recente em relação com outras cartas. Teologicamente, Gálatas reflete uma posição mais próxima de 1 Tessalonicenses, enquanto Romanos, a última grande carta paulina, apresenta uma revisão de pontos importantes de Gálatas. Portanto, uma data remota é mais provável.

A carta não apresenta pistas a respeito do lugar de origem. O Prólogo Marcionita (para esse texto cf. Harnack 1924: 127-128) afirma que ela foi remetida de Éfeso, mas o subscripto que consta em alguns manuscritos de Gálatas indica Roma como o lugar do qual ela foi enviada. Os pesquisadores têm argumentado em favor de Éfeso, Macedônia e Coríntio, mas tais indicações não são mais do que meras possibilidades.

Gálatas como um documento histórico – A história da Igreja Primitiva

Informações relativas à história da Igreja Primitiva são comparativamente ricas, embora extremamente breves. Como a missão se espandiu para a Palestina e a Síria muito cedo, não havia, aparentemente, regulamentações concernentes a áreas ou a identidades éticas. Surgiram oposições contra a prática de fazer convertidos entre os gentios sem sujeitá-los à Torá e à circuncisão. Esta disputa gerou a Conferência de Jerusalém (2.1-10), onde três partidos se apresentaram: Paulo, Barnabé e Tito, como delegados da missão gentílica; Tiago, Cefas e João, como os “pilares” da igreja de Jerusalém (2.9); e a oposição anti-paulina, chamada de “falsos irmãos” (2.4). O último grupo exigia a circuncisão e a obediência da Torá aos gentios bem como aos judeus cristãos. Os dois grupos primeiros concordavam entre si, em detrimento do último. O gentio Tito participou da conferência e retornou incircunciso (2.3).

Em Gl 2.7-9 Paulo apresenta os pontos de concordância a que chegou a conferência. Foi reconhecido um Deus e uma igreja, mas a missão foi dividida em duas. Cefas assumiu o “apostolado da circuncisão”, enquanto Paulo foi reconhecido como o líder da missão aos gentios. Como gratidão (2 Co 9.6-15; Rm 15.27), o apóstolo promoveu uma coleta para levantar fundos aos pobres da igreja de Jerusalém (2.10).

O episódio final apresenta o conflito entre Paulo e Cefas em Antioquia (2.11-14). O que estava em discussão era se judeus cristãos poderiam ter comunhão à mesa com cristãos gentílicos sem que violassem suas leis de pureza (koinophagia, “consumo de alimentos impuros”). A questão era: o que é mais importante, a comunhão cristã ou as leis de pureza judaicas? Paulo assumiu o lado dos cristãos gentios, defendendo suas posições a respeito da fé e da salvação; mas Cefas, Barnabé e outros foram persuadidos a se retirar pelos “homens mandados por Tiago”. A disputa não foi resolvida, resultando na separação de Paulo dos outros cristãos judeus presentes; um resultado futuro foi a crise na Galácia que gerou a carta de Paulo.
 
 

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Novo livro - Gálatas

 
Caros blogueiros,

Terminados os comentários ao livro de Rute, resolvemos abordar um texto do Novo Testamento. A escolha recaiu sobre a carta do apóstolo Paulo aos Gálatas. Pensamos que há nessa epístola importantes questões, tanto do ponto de vista da abordagem metodológica quanto da relevância para os tempos em que vivemos.

Logo começaremos as postagens. Esperamos que gostem!

Os editores.
 
 

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Momento final. Tempo de avaliação e de gratidão. Rute 4

 
O último segmento do livro de Rute a ser analisado é pequeno – 4.13-22. No entanto, como final do livro, é de importância fundamental para a compreensão do drama das viúvas e de seu parente resgatador.

Os personagens principais não são sujeitos do discurso no texto. Ou fala-se deles, ou então fala-se sobre eles. Ocorre o mesmo que se deu no início do livro (1.1-7). No primeiro capítulo foi feita uma descrição dos cenários, personagens e dramas vividos para somente depois introduzir os personagens em ação. Agora, no final, há semelhante estratégia. Com exceção do v. 13, que relata a união entre Boaz e Rute, os demais versículos silenciam a respeito das atitudes dos personagens. Suas ações e falas ficam no passado. Agora é tempo de avaliação final.

Para tanto, duas vozes são ouvidas. A do narrador (v. 13, 16, 18-22) e a das mulheres (v. 14-15, 17). De modo alternado elas relatam o resumo final da história. Embora os diálogos se constituam no ponto central do livro, a presença narratorial também tem sua importância e se manifesta no enredo de modo claro e sem grandes envolvimentos pessoais. Quando necessário, ressaltou o sofrimento (1.3-5), e quando a situação foi alterada, relatou os resultados (2.3, 23; 4.13). Quanto a isso, o narrador acompanha o desenvolvimento da história. Não nega, como poderia fazer com pseudoargumentos teológicos, que o sofrimento atinja as protagonistas, mas, ao mesmo tempo, relata a alteração desse quadro. É isso que ocorre no final. De modo sintético o narrador dá a conhecer ao leitor que, de fato, Boaz cumpriu a promessa e tomou Rute como esposa, tiveram um filho (4.13) e ele foi o consolo de Noemi (v. 16). Como última informação, apresenta a descendência de Boaz, cujo ápice é o futuro rei Davi.

Central neste trecho é a voz das mulheres, que já havia aparecido anteriormente (1.19). Naquele momento, demonstrando surpresa e assombro pelo estado em que se encontrava Noemi. Na segunda ocorrência, a situação é inversa. Elas louvam a Deus por trazer à anciã um neto que será, ele mesmo, seu resgatador (4.14) e definem, de modo que não feito ainda, qual foi o papel de Rute para com ela: não apenas aquela que lhe dá um neto e a posteridade da família, como também a realidade inconteste de que isso se acontece porque ela “a ama”, e “é melhor do que sete filhos”. Eis aqui uma revelação feita pelo narrador por intermédio da boca da mulheres.

Não se nega a perda terrível sofrida por Noemi. Isso está claro em todo o livro. Mas o que vai se revelando, inicialmente de modo implícito, mas cada vez mais de forma concreta mediante as ações de Rute é que, embora ela não ocupasse o espaço emotivo daqueles que faltavam, ela não apenas assumiu o papel deles, como sua ação é interpretada pelo coro de mulheres como uma ação ideal (“sete filhos” era tido como o número ideal de filhos. Cf. 1 Sm 2.5 e Jó 1.2). Ou seja, Noemi não ficou desamparada, mas teve, em lugar daqueles que se foram, alguém à altura para substituí-los, como o enredo deixa claro.

Último dado a ser comentado a respeito da participação do coro de mulheres é a designação do nome para o filho de Rute/Boaz (4.17). Isso era incomum em Israel. Ou as mães atribuíam nome aos filhos (cf. Is 7.14) ou os pais (Lc 1.62-63). Por que as mulheres tomam tal iniciativa? Minha hipótese é que essa é uma estratégia do narrador. Ao invés dele mesmo descrever a cena, ou de apresentar os pais nomeando o recém-nascido, ele segue a estratégia de indicar acontecimentos importantes a partir de terceiras pessoas. Isso significa que o nascimento e o nome da criança são autenticados pela constatação daqueles que estão em volta, de que, de fato, esse é um acontecimento especial.

A criança será avô do futuro rei Davi. Esse é o ponto alto. E mostra como uma família sai da desgraça total (sem terra, sem dinheiro, sem descendentes) para se tornar aquela que traria ao mundo o principal e mais importante rei que haveria de nascer em Israel.

Bem, podemos pensar em algumas conclusões.

Uma delas foi estabelecida logo acima. O livro de Rute nos mostra que, para aqueles que creem e confiam em Deus, mesmo quando ele parece ser o inimigo, como julgou inicialmente Noemi, nunca é o fim da linha. Sempre há e haverá uma porta aberta, uma possibilidade de resgate e libertação, um razão pela qual orar e crer.

Outro aspecto muito belo da história é a estratégia de sua apresentação. Os diálogos são centrais, e as avaliações são feitas, não pelos próprios personagens, mas por terceiros. Isso revela que o mais importante não é o que pensamos de nós mesmos ou como nos avaliamos, embora a necessidade de consciência ética e de compromisso com Deus sejam importantes. O que vale é o que fazemos de concreto e que pode ser visto e avaliado pelos que nos veem. É aí, nas situações da vida, que nosso testemunho é avaliado e provado.

Um último dado para reflexão é a importância da família. Não digo isso em uma perspectiva moral, embora ela seja importante, mas de unidade social. Noemi e Rute sobrevivem apenas por que resolvem permanecer juntas. Caso contrário, a história teria acabado no primeiro capítulo, com Rute voltando para casa e Noemi, provavelmente, morrendo. É a família que nos tem e nós a temos. Ao final, esse é o fato mais importante. Mesmo em termos da presença na sociedade. E não falo mais acerca de sobrevivência. Falo de cidadania, de valores, de visão de mundo. Somos nós, famílias, que formamos a base da sociedade. Embora a nossa seja muito diferente daquela em que viveram os personagens do livro de Rute. Eis aí nosso desafio. Não a tentativa de uma volta saudosista de um tempo que não mais existe, mas a vivência de valores cristãos em um mundo em transformação. Mesmo o rei mais importante da história de Israel somente tem sentido se inserido nas lutas e vivências da pequena família de Noemi/Rute/Boaz.

Um questionamento, quase a título de provacação. Não passa imperceptível o papel da mulheres em Rute. Temos duas protagonistas e, embora Boaz também ocupe papel central, ele é quase que manipulado pelas mulheres, embora sua bondade inata sempre esteja presente. E temos o coral de mulheres ressaltando e reafirmando aspectos centrais para a história. E tudo isso em um mundo patriarcal. Vale a pena refletir sobre isso!