O estudo de Paulo começa com o reconhecimento de que ele “... era um homem de três mundos: judaico, grego e cristão”.
Background
Paulo e o Helenismo. A familiaridade com o mundo grego é indicada pela sua origem (Tarso, centro do epicurismo) e pelo estilo e vocabulário helênico. Ele foi capaz de “... interpretar o evangelho numa forma que fosse compatível com a cultura helênica.” Mas não há fusão de idéias gregas com a teologia judaico-cristã.
Paulo e o judaísmo. Na base da mentalidade e formação de Paulo está o ambiente judaico, do qual ele próprio dá testemunho (Fp 3.5,6; 2Co 11.22; Gl 1.14; At 22.3). Como Paulo nunca recebeu uma “teologia pronta”, suas idéias devem ser entendidas a partir de seu embasamento original. Em princípio, há pouca dúvida de que os alicerces do pensamento Paulino estavam no AT e no judaísmo de seu tempo. “... Paulo estava preparado, como teólogo judeu, a pensar, sob orientação do Espírito Santo, nas implicações do fato de que o Jesus de Nazaré crucificado era de fato o Messias e o Filho de Deus ressurreto e elevado ao céu”. O problema é que o judaísmo não era uniforme; era composto de várias correntes, especialmente a rabínica (farisaísmo), a apocalíptica, a helenista (diáspora) e a qumrânica. Essas correntes interagiam e não eram puras.
Assim, propôs-se que Paulo fosse basicamente rabínico (W. D. Davies), apocalipsista radical (Schweizter), sincretista que fundiu o cristianismo judaico primitivo com as religiões de mistério ou um helenista com características protognósticas. Provavelmente o embasamento teológico de Paulo é judaico, farisaico (rabínico) e apocalíptico, mas aberto a certa influência das outras correntes judaicas e do helenismo.
A religião de Paulo reflete sua origem judaica, no monoteísmo, culto, ética, fé nas escrituras hebraicas e até na hermenêutica. Como judeu, afirmava a centralidade da Lei, que incluía as tradições (Gl 1.14). Como os outros fariseus, Paulo “... tinha perdido o sentido da revelação de Deus e a sua fala através da voz viva da profecia.”, agarrando-se ao Torah. Participava da esperança escatológica básica do judaísmo, que remonta aos profetas do AT, na estrutura apocalíptica de duas eras (olam hazzeh e olam habbah), esperando a salvação futura de Deus. Era um perseguidor dos cristãos na medida em que reconhecia em Jesus a negação do judaísmo farisaico, que para ele era a fé bíblica. Jesus não poderia ser o Messias, nem seus discípulos o povo messiânico; portanto o movimento representado por Estevão tinha de estar errado (At 7.35ss., 58; Gl 1.13; 1Co 15.9; Fp 3.6), e “... a própria existência da igreja, com sua afirmação de ser o povo do Messias, era uma ameaça ao judaísmo”.
Paulo conheceu o cristianismo helenista de Jerusalém. Como judeu helenista originário de Tarso, Paulo freqüentava a sinagoga dos “libertos”, onde ouviu a pregação irresistível do helenista Estevão (At 6.8-10). As acusações de que este ensinava contra o Templo e contra a Lei (6.13,14) tem seu fundo de verdade claro no sermão que ele proferiu, especialmente no final, onde afirma que Deus não habita em templos humanos e que os próprios judeus jamais cumpriram a Lei (7.48-53). O desafio reformatório de Estevão ao judaísmo abalou o equilíbrio alcançado entre a igreja e o judaísmo com Gamaliel (5.33-42) levando a uma grande perseguição da qual Paulo foi um importante personagem (7.54-8.1-3; 9.1ss.). Esse mesmo desafio reformatório é encontrado posteriormente no ministério de Paulo.
A Experiência Revelatória
A experiência no caminho de Damasco está na origem da religião de Paulo. Diversas tentativas foram feitas para explicar a experiência; ela certamente não foi fruto de reflexão, pois todos os testemunhos indicam que a mudança foi quase instantânea; alguns propuseram que teria sido uma crise psicológica, mas não há indícios de que ele estivesse psicologicamente predisposto a tal crise (cf. Fp 3.4,7; Rm 2.13,23). A história não consegue encontrar uma explicação natural e limita-se ao silêncio; a interpretação existencial vê uma mudança radical no autoentendimento, mas como bem coloca Ladd, essa mudança não é o conteúdo, e sim o resultado da experiência de Damasco. Paulo nunca diz que sua insatisfação com o judaísmo o levou à fé e à experiência com Cristo; pelo contrário, afirma que o encontro com Cristo produziu sua insatisfação com o judaísmo. A melhor opção é sem dúvida ouvir o que o próprio Paulo disse. Para ele o que aconteceu foi “... uma aparição a ele do Jesus ressurreto, glorificado...” (cf. Gl 1.12; 1Co 9.1; 15.8; At 9.1-9; 22.6-16; 26.12-18). Essa é a única alternativa viável para explicar a transformação de Paulo.
A experiência de Paulo está na origem de sua teologia. Através da visão do ressurreto Paulo pôde compreender que: 1) Paulo viu que Jesus é o Messias e o Filho de Deus (At 9.20). Ele percebeu naquele momento a presença da glória de Deus na face de Jesus, com a implicação de que Cristo era o revelador de Deus e a sua imagem (2Co 4.4-6). Isso também, necessariamente, levou a uma reavaliação a respeito da função da Cruz; ela não poderia significar a condenação pelo pecado devendo ser antes compreendida como um ato redentivo de Deus. 2) Paulo viu o Cristo ressuscitado, e isso trazia conseqüências dramáticas. Ele estava consciente de que a presente era é má (Gl 1.4; Rm 8.35; Fp 2.26; Rm 8.21; 1Co 11.32), mas se viu diante de um fato novo: a ressurreição e glorificação de Jesus. Paulo entendeu que na ressurreição de Jesus, a ressurreição escatológica, e, portanto, a era vindoura já tinha começado (1Co 15.21-23,52). Isso exigiu uma modificação na estrutura de duas eras, com a introdução da idéia de que estamos num tempo intermediário, que pertence às duas eras (um entre tempos; cf. 1Co 10.11). Ainda há, no futuro, o dia do Senhor, que é o dia de Cristo, a parousia (1Ts 5.2; 2Ts 2.2; 1Co 1.8; 2Co 1.14; Fp 1.6; 1Ts 2.19; 2Ts 2.1; 1.12), mas o crente já participa de uma nova ordem de existência, de novidade plena, por meio de Cristo ou “em Cristo” (2Co 5.16,17; cf. Is 65.17; Ap 21.5).
O Novo Homem foi gerado! 3) Paulo viu a graça de Deus. Naquele momento, tanto o sistema sacrifical do culto do Templo, como o complicado sistema da religião legalística farisaica entraram em colapso na mente de Paulo, pois com tudo isso ele era inimigo de Deus, e sem nada disso, os cristãos eram o povo de Deus! Com isso Paulo foi levado a reinterpretar o papel da lei e o próprio Templo. Mas o fator fundamental foi a sua própria experiência da graça. Paulo estava no meio de uma experiência de ira e revolta quando foi alcançado pela graça. Em 1Tm 1.12-17 ele conta essa experiência como sendo o “transbordamento da graça” (vs 14). Nesse momento Paulo foi obrigado a reconhecer a suficiência e a invencibilidade da graça, bem como a sua localização histórico-redentiva: a pessoa de Jesus. 4) Paulo viu na Igreja o novo povo de Deus.
A conexão íntima entre Deus e os cristãos ficou evidente no questionamento: “porque me persegues”? É possível que essa pergunta tenha dado origem à sua percepção da igreja como o “corpo de Cristo”. 5) Paulo teve uma experiência “pneumática”. Ele entendia o Dom do Espírito como o conhecimento pessoal do amor de Deus (Rm 5.5; 8.15), conhecimento que ele obteve a partir da conversão. Em 2Co 4.6 ele dá testemunho de que a conversão envolve um conhecimento subjetivo da presença da glória de Deus em Cristo, um “brilhar de Deus” no coração. Mas um pouco antes, em 2Co 3.12-18, a visão da glória de Deus em Cristo foi identificada com a liberdade do Espírito Santo. Assim a visão de Cristo por si mesma gerou tanto sua compreensão sobre a natureza objetiva de Cristo como a sua compreensão da experiência subjetiva do “Cristo-espírito”. Assim, mais tarde, Paulo pôde elaborar a sua conclusão de que o Espírito Santo prometido no AT para o tempo da salvação foi finalmente derramado.
Reunindo estes elementos, temos a base da compreensão de Paulo a respeito do evangelho; Cristo como o revelador da glória-imagem de Deus, e o ponto de inflexão da história da redenção; o início da vitória de Deus e a irrupção do eschaton por meio da cruz-ressurreição; a graça de Deus como o conteúdo essencial da ação de Deus em Jesus; e a criação de um novo povo de Deus que experimenta já os benefícios da salvação.
A Tradição Cristã Primitiva
Paulo recebeu a tradição da igreja primitiva. Embora ele afirme que recebeu o evangelho por revelação (Gl 1), também ensina abertamente que o recebeu por tradição (1Co 15.1ss.). Não há qualquer contradição aqui, pois o evangelho constitui-se de fato e interpretação: 1) Paulo pode ter conhecido a notícia sobre Jesus (a tradição) antes mesmo da conversão, mas a interpretação dessa notícia não lhe veio enquanto não teve a experiência revelatória. Só então Paulo conheceu o evangelho, pois “O Evangelho é, ao mesmo tempo, tradição histórica e querigma pneumático por natureza.” Toda a interpretação teológica que Paulo fez do kerigma tradicional é parte o evangelho, mas não veio senão por revelação; 2) Por outro lado, o evangelho não pode ser outra coisa que não tradição do fato, pois é o relato de uma situação histórica definida – o evento de Cristo. Assim, mesmo para Paulo, o evangelho é recebido por tradição.
Fórmulas doutrinárias e de confissão podem ser encontradas em Paulo. São de caráter cristológico e soteriológico, tendo origem na igreja da palestina (1Co 15.3-5; Rm 1.3ss.; 1Ts 1.9,10; Tt 3.4-7) ou talvez na igreja helenista (1Co12. 3; 10.9?). Há também fórmulas sobre Deus (1Ts 1.9; 1Co 8.6) e talvez alguns hinos (Fp 2.6-11; Cl 1.15-20; 1Tm 3.16; 2Tm 2.11-13).
A tradição parenética da igreja é aproveitada por Paulo em diversos lugares. Isso explica a semelhança entre exortações paulinas e as presentes em outros textos do NT, especialmente 1 Pedro (cf. Rm 12//1Pe 2.11-3.22; Rm 12.17//1Pe 3.9; Rm 13.1-7//1Pe 2.13-17).
Os ditos do Jesus terreno são citados diretamente em algumas ocasiões (1Co 7.10; 9.14; 11.23-26; 1Ts 4.15; 1Tm 5.18) ou aludidos (Rm 12.14-17; 13.7-10; 14.14; 1Co 4.17; 6.1-7). Não são, porém comentados extensivamente.
As Escrituras
Paulo considera as Escrituras do Antigo Testamento inspiradas. Para ele elas são “sagradas” (Rm 1.2; 2Tm 3.15), contém os “oráculos de Deus” (3.1,2), suas palavras são citadas como tendo autoridade (Rm 4.3,17; 10.11; Gl 4.30), elas são identificadas com a fala de Deus (Rm 9.17), elas são inspiradas por Deus (2Tm 3.16). O texto de 2Tm diz que 1) “toda” (pasa) a Escritura é inspirada; isso indica que tudo o que é reconhecido como Escritura, ou, tudo o que é canônico, é inspirado; 2) usa a palavra Theopneustos, “divinamente inspirada” para destacar a origem divina da Escritura. Exatamente por ter um conceito tão alto das Escrituras, Paulo busca relacionar seu evangelho com elas, fundamentando-o e ilustrando-o com citações e alusões.
Paulo interpreta a Escritura como Promessa e Lei. Ele distingue claramente entre Lei e Promessa, ambas presentes na Escritura (Rm 9.4; 4.13,14; Gl 3.17,18, 21). A Lei foi dada com uma função limitada na economia da salvação (Gl3. 24,25), mas a Promessa é anterior à Lei e a excede. A Promessa inclui as promessas do AT (Rm 9.4; 15.8; 2Co 1.20; 7.1), a vida (Gl 3.21; Rm 4.17), a justiça (Gl 3.21), o Espírito (Gl 3.14, Ef 1.13), a filiação (Rm 9.8; Gl 4.22), “... em suma, a salvação escatológica.” A Promessa é uma aliança (Gl 3.17; Ef 2.12).
Paulo interpreta a Escritura Cristocentricamente. Cristo cumpre a Escritura, pois nele se dá o sim de Deus para todas as promessas do AT (2Co 1.20). Ele confirmou as promessas (Rm 15.8) e as consolidou (Rm 4.3). Além disso, a Lei encontra Nele seu “fim” (Rm 10.4). Ela própria testemunha da justiça de Deus (Rm 3.21). Dessa forma, “Todo o núcleo substancial do evangelho está contido em promessa na Escritura.” a Escritura como um todo testemunha de Cristo e o evangelho de Cristo está em continuidade direta com a revelação do AT (Rm 1.17; 4.3-8, 17,18; 3.21; 16.25,25; 1Co 15.1-4).
Paulo interpreta a Escritura Pneumaticamente. Cristo é o centro da Escritura, a chave para o seu entendimento. Mas ela só pode ser entendida dessa forma pela iluminação do Espírito, a partir do evento de Cristo (2Co 3.11-18). Os incrédulos tem seus sentidos “embotados” quando lêem o AT (3.14), e o entendimento “cegado” (4.3,4). O reconhecimento da centralidade de Cristo depende de uma iluminação divina (4.6), por meio da conversão (3.16). Assim, o entendimento da Escritura coincide com a fé em Jesus.
Paulo interpreta a Escritura Escatologicamente. O sentido final da Escritura só seria desvelado no escathon, quando suas promessas se realizariam. A comunidade escatológica é a comunidade que vê diante de si o cumprimento das promessas de Deus, e da própria Escritura (2Co 3.6,14), sendo, portanto o destino final da Escritura (1Co 10.11; Rm 15.4). Ela é assim o “Antigo Testamento” (2Co 3.14).
Paulo interpreta a Escritura Tipologicamente. Em 1Co 10.11 Paulo diz que o que aconteceu no AT é “exemplo” (typikos; synenbanein). “... nos eventos narrados na Escritura, devem ser vistos representados ‘tipicamente’ os eventos da vida do leitor.” É o caso de Abraão, cujo relato de sua justificação se dirige a nós (Rm 4.23-25), bem como o relato de sua eleição (Gl 3.6-18) ou dos Israelitas que caíram na idolatria (1Co 10.1-11), ou de Adão (Rm 5.12-21).
Paulo utiliza as técnicas da exegese rabínica. Temos assim elaborados “midrashim” em Gl 3-4, Rm 9-11 e Ef 2. Em Gálatas, por exemplo, Paulo usa regra midráshica segundo a qual quando dois textos estão em contradição, um terceiro texto pode resolvê-la (3.10-14), ou a técnica de ler um substantivo coletivo como um singular, referindo-se a um indivíduo (3.16-18). . Em Rm 5.15-17 usa a “conclusão a minore ad maius”, em Rm 4.3-8 a conclusão por analogia. Usa também a alegoria própria do judaísmo helenista (1Co 9.9ss.; 10.4; Gl 4.21-31).
A Autoridade Apostólica
A tarefa apostólica e as igrejas. O apostolado foi a função mais importante já desempenhada desde o nascimento da igreja. As qualificações para o apostolado eram o ser testemunha ocular da ressurreição (At 1.22; 1Co 9.1), a vocação do Senhor e os sinais e prodígios (2Co 12.12; Rm 15.19; Gl 3.5). O apóstolo tinha de ser considerado como o próprio Senhor, e era incumbido de pregar o evangelho e fundar igrejas (Rm 1.1; 1Tm 2.7; 2Co 2.17-3.3). A autoridade apostólica não significava infabilidade (cf. Gl 2.11ss.; At 15.7ss.). Também não significava domínio dos crentes. “... a autoridade dos apóstolos parece ter sido exercida mais a nível moral e espiritual, e não haver sido incorporada nas estruturas legais e institucionais.” (2Co 1.24; 4.2,5; 11.20; 1Co 7.23). O verdadeiro apóstolo serve de maneira desinteressada (2Co 11.12).
Paulo Magister: a autoridade divina do apostolado. Como apóstolo, Paulo tinha consciência de ser o agente da revelação, ou do “mistério” agora manifesto (Rm 16.25,26), considerando-se o portador da revelação (Rm 15.19; 1Co 4.1; Cl 4.3; Ef 3.3,5). Por isso a atitude de Paulo para com sua própria mensagem era de que esta tinha autoridade divina; “... suas cartas refletem um senso de autoridade, à luz da qual se tem que ler todo o pensamento de Paulo.” (cf. 1Co 7.10,12, 40; 14.37; 2Co 10.8; 11.6; Gl 1.6ss.; 2Ts 3.14; 2Co 2.9; 8.8; Fp 3.15). Paulo reivindica autoridade a partir de sua vocação apostólica (At 9.15,16; 22.15; 26.17,18; Gl 1.15ss; 1Co 9.16ss.; 2Co 10.8; 13.10; Gl 2.7-9), e divide a autoridade com os outros apóstolos (1Co 12.18; Ef 4.11).
O conteúdo da pregação apostólica. O conteúdo da pregação apostólica é o evangelho, o mysterion tou euangelion que foi revelado aos apóstolos (Rm 16.25,26; Gl 1.11,12; Ef 6.19), e esse conteúdo inclui tanto a proclamação do fato histórico da morte e ressurreição de Jesus como do seu significado redentor. Esse fato fica bem claro, por exemplo, em 1 Coríntios. Ao combater uma distorção do evangelho, feita por mestres de tendências helenizantes em Corinto, Paulo os acusou de não estarem realmente entendendo o significado da cruz. Nessa discussão, que transparece ao longo da carta, ele deixou claro que o mistério revelado de Deus envolve não só o próprio fato histórico da morte e ressurreição de Jesus, como também o sentido da cruz, como Deus usou “... a profundidade da humilhação e da degradação como meio de salvação.” (1Co 1.17,23; 2.7). Devemos entender, portanto que tanto a totalidade do evento histórico de Jesus, como a interpretação apostólica, que faz parte deste evento, são a revelação.
A autoridade da tradição apostólica. A revelação não é somente o evento histórico passado; tampouco é a confrontação com Deus que ocorre na palavra pregada, como quer Bultmann . Para Paulo, a revelação acontece, não só no evento histórico, mas num sentido, quando o evangelho é proclamado (Rm 1.16; 16.25,26; Ef 6.19; 1Co 1.21). Assim, há uma unidade dinâmica entre o evento e a proclamação do evento, e a proclamação é a atualização do evento.
O conceito de tradição em Paulo corrobora com essa idéia. Ele usa um vocabulário técnico das tradições judaicas orais (paradosis;, paradidomi, paralambano) para se referir ao evangelho e aos ensinos transmitidos aos crentes (1Co 11.2,23; 15.1-5; Gl 1.9; 1Ts 2.13; 2Ts 2.15; 3.6). Mas seu conceito de tradição distingui-se do conceito judaico porque a recepção da verdade evangélica significava receber o próprio Cristo como Senhor (1Ts 2.13; 1Co 15.1; Cl 2.16; Rm 10.8,9), possiblilitada pelo Espírito (1Co 12.3). Assim, a tradição tem um caráter histórico mas também um caráter kerigmático-pneumático; e a palavra pregada é ao mesmo tempo palavra de homem e palavra de Deus (1Ts 2.13; Ef 1.13; Cl 1.5,25; 1Co 1.18,21; 2Co 5.19; Fp 1.14; 2.16; 2Tm 2.9,19), e o próprio Deus se encontra com os homens na palavra da cruz.
A tradição é tanto fixa (Gl 1.8,9), não podendo ser modificada, como dinâmica, podendo ser aumentada, por meio do ensino dos apóstolos, que revelam as implicações do evento de Cristo. A tradição apostólica faz, portanto, parte da revelação. Em Gálatas, Paulo não nega que a revelação venha por meio da tradição; apenas afirma que, como apóstolo, ele recebeu a revelação do glorificado independentemente da tradição. Mas ainda assim ele reconhecia a tradição, como veremos (cf 1Co 11 e 15).
A natureza e autoridade divina das epístolas. Com toda certeza “somos afortunados em ter uma substancial coleção de fontes primárias do próprio punho de Paulo” As epístolas são produtos do exercício da autoridade apostólica de Paulo, na disciplina, pregação e instrução doutrinária. Elas participam, portanto, da mesma autoridade divina de Paulo como extensões permanentes de sua função apostólica, constituindo o nosso acesso privilegiado ao evangelho de Paulo. Por outro lado, a natureza aliterária e prática das epístolas de Paulo cria dificuldades especiais para seu entendimento. Isso significa que Paulo não era um teólogo sistemático. Johann Christiaan Beker propôs como chave para a teologia de Paulo lermos as cartas como “... interação entre o centro coerente e interpretação contingente”. Ou seja, a mensagem única de Paulo é o ponto de partida para suas reflexões e aplicações práticas. Assim, “... podemos reconhecer uma teologia paulina como uma interpretação do significado da pessoa e da obra de Cristo em sua importância prática para a vida cristã, tanto individual como coletiva.”
Outra dificuldade na leitura de Paulo é que não temos o seu pensamento completo. O que temos são discussões de sua teologia aplicada às necessidades práticas das igrejas. Assim, o que temos, devemos aos acidentes da história . Por essa razão é um grande erro trabalhar com a suposição de que o que não está nas epístolas necessariamente era desconhecido de Paulo (especialmente a questão da vida terrena de Jesus), pois como bem colocou o autor, “... o silêncio não significa ignorância.” Quanto à falta de enquadramento histórico para certos ensinos de Paulo, devemos evitar juízos absolutos.